CLARICE LISPECTOR: AUTORA E TRADUTORA

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Em outras ocasiões já foi dito pela Fundação Biblioteca Nacional que Clarice Lispector é a autora brasileira cujas obras literárias receberam mais apoio financeiro pelo Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior (https://bookcenterbrazil.wordpress.com/2017/12/08/a-volta-ao-mundo-em-20-capas-de-clarice/). De fato, entre 1991 e 2020, o legado literário da autora foi contemplado 60 vezes em projetos de tradução pela FBN para idiomas que vão do inglês, espanhol, francês e alemão, passando pelo polonês, húngaro, ucraniano, eslovaco, estoniano, turco, búlgaro, grego, macedônio, sueco, dinamarquês, croata, dentre outros. Dentre as editoras, a norte-americana New Directions foi aquela que mais publicou Clarice com o apoio do Programa de Tradução, totalizando 11 títulos (https://www.ndbooks.com/author/clarice-lispector/). No entanto, o que é pouco divulgado e conhecido pelo público em geral é que Clarice Lispector também foi uma excelente e prolífica tradutora.

Destaque da obra de Clarice em 10 capas de edições estrangeiras de seus livros apoiados pelo Programa de Tradução da FBN

Do alto de seus 17 anos, Clarice Lispector imagina um meio de custear suas despesas. Resolve dar aulas de matemática e português, aprende datilografia e passa a frequentar a Cultura Inglesa. Ela que já sabia francês, conhecia bem hebraico e iídiche, lembrava um pouco de russo, ficou fluente em inglês e fez da máquina de escrever uma companheira inseparável de toda a sua vida. Aos 19 anos, Clarice já traduzia textos científicos escritos em inglês. Em 1940, aos 20 anos, cursando o segundo ano da Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, ela procura Lourival Fontes (1899-1967), diretor do DIP, o “Departamento de Imprensa e Propaganda” de Getúlio Vargas, para ver se consegue uma vaga de tradutora. Vaga não tinha e Clarice vira repórter e redatora da Agência Nacional, então vinculada ao DIP. No faz de tudo da redação, traduz cartas e documentos. Em maio de 1940, escrevendo a Elisa, sua irmã, ela comemora: “Recebi na 2ª feira 28$200 na redação concernente a traduções antigas”. Traduções antigas, isto é, demoraram a pagar… Sempre atenta, porém, às oportunidades, no início do ano seguinte publica, na revista Vamos Lêr! (1936-1948), a sua primeira tradução literária, feita do francês, um conto de Claude Farrère (1876-1957), “O missionário”, aliás uma grande alegoria do ofício de tradutor. O nome sai errado na revista – “Clarisse” – e talvez tenha lhe insinuado, ela que via sinais e presságios em quase tudo, que o caminho de Clarice-Tradutora seria um tanto sinuoso: de fato o foi. De 1941 a 1977, ano de sua morte, serão 46 os títulos que traduziu do inglês, francês e espanhol, a maioria a partir de 1967. Em ambos extremos desse sinuoso caminho, partida e chegada, juventude e maturidade, há algo em comum: ela traduz para ganhar a vida.

Obras traduzidas por Clarice Lispector para o português

Aos 23 anos, Clarice casa-se com Maury Gurgel Valente (1921-1994), já no Itamaraty e futuro diplomata. Viaja muito, portanto, e publica seus livros; já não precisa preocupar-se com instabilidades financeiras. Em 1943 lançou seu primeiro livro, Perto do coração selvagem que, bem acolhido pela crítica, recebe o Prêmio Graça Aranha de melhor romance daquele ano. Passados dois anos, aparece a primeiríssima tradução de um texto seu, feita para o italiano, o capítulo “A tia” de seu romance de estreia; “La zia” saiu na revista Prosa, mantida, em Roma, pelos “solarianos”; a tradução esteve aos cuidados do intempestivo Ungaretti (1888-1970) que mal acabara de chegar do Brasil (1942). Não muito tempo depois, em 1952, Beata Vettori (1909-1994), uma diplomata brasileira engajada nas pautas feministas, traduziu o capítulo “Os primeiros desertores” de A cidade sitiada que Clarice lançara em 1949. À época, Beata Vettori estava no Rio, vinda de uma missão diplomática de 3 anos em Londres, e atuava na secretaria do Instituto Rio Branco. O capítulo saiu com o título “Persée dans le train” [Perseu no trem] na revista literária Roman, da editora parisiense Plon, dirigida pela autora e tradutora feminista Célia Bertin (1920-2014) em parceria com Pierre Lescure (1891-1963).

A excelente tradução de Vettori ensejou o interesse de se publicar, em francês, Perto do coração selvagem (1943). Faltava, porém, quem fizesse a tradução. Lescure e Bertin encontraram em Denise-Teresa Moutonnier, uma elegante parisiense poliglota que viera ao Brasil em 1953 como secretária do arquiteto Gaston Bardet (1907-1989), a primeira tradutora de uma obra integral de Clarice Lispector. Em vista do prazo, bastante exíguo, Moutonnier traduziu as 250 páginas de Perto do coração selvagem em poucas semanas, talvez menos de um mês, mas Clarice não gostou de Près du coeur sauvage… Achou a tradução “extremamente ruim”. Mas essa já é outra estória. Passado o primeiro momento, a autora se arrependeu desse juízo e, educadíssima, desculpou-se por duas vezes junto ao editor Pierre Lescure. Moutonnier deve ser considerada a “primeira tradutora” de Lispector por ter sido quem por primeiro traduziu uma obra completa da autora. Atualmente, Perto do coração selvagem circula em 18 idiomas.

Destaque da obra de Clarice em 10 capas de edições estrangeiras de seus livros apoiados pelo Programa de Tradução da FBN

Em 1963, do alto agora de seus 43 anos, separada há 4 anos do marido, Clarice Lispector precisa reiventar-se financeiramente. Traduzir…? Por quer não? E Matriz de Bravos, The winthrop Woman, de Anya Selton (1904-1990), sai pela editora Ypiranga. Nos próximos anos, até o fim da vida, ela traduzirá romances, contos, literatura infanto-juvenil e peças de teatro (poucas e quase todas inéditas). Em 1967, em meio a esse recomeço um tanto forçado – ela passou quase 20 anos sem traduzir – e como que anunciando as dificuldades que marcariam seus últimos 10 anos de vida, a autora acidenta-se gravemente em um incêndio. Por pouco não perdeu a mão direita. Acidente, talvez trauma e certamente o medo como que emergem na crônica Traduzir procurando não trair publicada, no ano seguinte, na Revista Joia: “Traduzo, sim, mas fico cheia de medo de ler traduções que fazem de livros meus. Além de ter bastante enjoo de reler coisas minhas, fico também com medo do que o tradutor possa ter feito com um texto meu”.

“História dos dois que sonharam”, de Jorge Luis Borges, traduzido por Clarice Lispector. Publicado no Jornal do Brasil em 27 de dezembro de 1969. Fonte: acervo digital do Jornal do Brasil

Na década de 1970, novos apuros financeiros demandam mais e mais traduções. Em 1974, traduz 4 livros; em 1975, 8; em 1976, 4. Demitida em 1974 d’O Jornal do Brasil, ela comenta suas traduções: “É o meu sustento. Respeito os autores que traduzo, é claro, mas procuro me ligar mais no sentido do que nas palavras. Estas são bem minhas, são as que elejo. Não gosto que me empurrem, me botem num canto, exigindo as coisas. Por isto senti um grande alívio, quando me despediram de um jornal, recentemente. Agora só escrevo quando quero”. Em outra entrevista, diz que vive de “uma pequena renda que tenho, modesta; além disso, eu traduzo”. E traduz de tudo: Agatha Christie, Poe, Julio Verne, Jonathan Swift, Jack London, Wilde, Walter Scott, Henry Fielding e tantos outros. Há mesmo quem veja certa simbiose entre os textos traduzidos e as obras autorais publicadas entre 1974 e 76. Assim, a Hora da Estrela teria algo de A Rendeira, La Dentellière, de Pascal Lainé, traduzida em 1975 por Clarice. Seja como for, dentre os documentos custodiados pela Fundação Casa de Rui Barbosa há uma “Certidão de inscrição de profissional autônomo”, emitida em 6 de fevereiro 1975: Clarice Gurgel Valente “Escritora de livros e Tradutora”.

Depois da primeiríssima Près du coeur sauvage, de Denise-Teresa Moutonnier, vieram muitas outras primeiras traduções. Em 1955, a primeira feita para o espanhol; em 1961, a primeira para o inglês; em 1963, a primeira para o alemão; em 1973, a primeira para o tcheco. Hoje, Clarice conta com cerca de 180 traduções integrais em mais de 32 idiomas e 40 países. Desde o início do Programa de Tradução, a Biblioteca Nacional apoiou a difusão internacional de suas obras que já foram publicadas em sueco, espanhol, inglês, húngaro, eslovaco, grego, ucraniano, albanês, alemão, italiano, tcheco, dinamarquês e croata. Ultimamente, a obra de Clarice Lispector tem recebido um tratamento mais criterioso por parte das editoras estrangeiras que visam traduções esmeradas com projeto gráfico de qualidade, dando novo impulso à recepção dessas obras no exterior. Assim, por exemplo, embora o mercado editorial norte-americano seja muito fechado à literatura estrangeira, os contos de Clarice Lispector – The Complete Stories – traduzidos por Katrina Dodson com o apoio do Programa de Apoio à Tradução e Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, da FBN, lançado pela New Directions, foi escolhido pelo New York Times como um dos 100 melhores livros de 2015 (a obra também foi traduzido para o alemão pela Penguin Random House com o apoio do Programa de Tradução da FBN): https://www.nytimes.com/2015/08/02/books/review/the-complete-stories-by-clarice-lispector.html

“The Complete Stories”, by Clarice Lispector (publicado pela editora norte-americana New Directions com o apoio do Programa de Tradução da FBN)

Sobre Book Center Brazil

O Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, criado pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), objetiva difundir a cultura e a literatura brasileiras no exterior, com a concessão de apoio financeiro à tradução e à publicação de obras de autores brasileiros no exterior. O Programa é oferecido a editoras estrangeiras que desejam traduzir para qualquer idioma, publicar e distribuir, no exterior, em forma de livro impresso ou digital, obras de autores brasileiros anteriormente publicadas em português no Brasil.
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